sexta-feira, 1 de março de 2019

Megabytes de paixão - Leitura e Interpretação de Texto

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

Este texto é uma crônica. Ele lança um olhar ao mesmo tempo crítico e divertido sobre o mundo cada vez mais virtual em que vivemos. Vandemilson, durante uma queda do sistema em que seu computador está conectado, consegue finalmente perceber as pessoas e o ambiente de seu lugar de trabalho.

Megabytes de paixão

Se o disco rígido parar e o sistema der pau, ainda resta uma esperança. 
O Vandemilson, mais conhecido na empresa como vand@ekonometrikon.com.br, estava digitando mais um dos incontáveis e-mails que despachava todos os dias quando, justo na hora de ele teclar o emoticon de fechamento (:-\, "tou meio em dúvida") pif!, o sistema cai. E aí o Vandemilson se põe a pressionar todas as combinações imagináveis de Ctrl e Alt, até se convencer de que, realmente, aquele era um problema de proporções cósmicas. E fez então a única coisa que lhe restava fazer: ficou ali encarando a tela escura, com aquela mesma cara que um pinguim faria se, de repente, acordasse no meio do deserto do Saara.
Dez minutos de vigília depois, como nada de prático acontecesse, o Vandemilson resolveu fazer algo inédito em sua rotina diária: levantar-se da cadeira. E, uma vez em pé, pôde constatar que o local onde trabalhava era enorme, repleto de baias iguais à sua, centenas delas, distribuídas ao longo de cinco corredores que atravessavam todo o pavimento. Havia até quadros na parede, bebedouros, vasos...  e, então, veio a grande surpresa: num estalo, o Vandemilson notou algo ali que ele nunca percebera antes: pessoas! Um bando de gente, em pé ou circulando lentamente, e todo mundo com uma expressão de espanto idêntica à dele. Foi então que ele ouviu um som, vindo da baia vizinha:
- Oi!
Levou alguns segundos até o Vandemilson racionalizar e decodificar exatamente o que era aquilo: uma voz! E, aparentemente, humana. Emitida por uma loirinha que, o Vandemilson logo conclui, estava se dirigindo a ele.
- Tudo bem? Eu sou a Natália.
- Natália...
 O Vandemilson se pôs a conjeturar como aquele nome ficaria numa fonte Matisse ITC, corpo 14, em itálico. E foi então que a Natália proferiu a frase mágica, que tocou profundamente o coração do Vandemilson.
A Nat! O Vandemilson já havia mandado milhões de e-mails para ela, e recebido outros tantos, só que nunca imaginara que ela pudesse ter, assim, vamos dizer, cabelo, boca, braços... Mas ela tinha. E, aliás, era até bem configurada, com um design bastante atraente. E o Vandemilson imediatamente a visualizou numa tela, com uma placa de vídeo GeForce 4, sem distorções de imagem...
­­­- Você é o Vand, né? Adoro os seus forwards!
Naquele exato momento, o Vandemilson se deu conta de que a queda do sistema poderia não ter sido tão catastrófica assim. E, já meio deslumbrado, perguntou a Nat:
- Isso aí no seu micro é um gravador de DVD?
- É, então, RW, até 4.7 giga. Eu mesma instalei.
Aquela era, definitivamente, a mulher com que o Vandemilson sempre sonhara. Para ser perfeita, só faltava ela ser digital. Mas a versão analógica até que não era de se jogar fora, e o Vandemilson resolveu pular o setup e partir para o quick start. E arriscou uma questão íntima:
- Quantos giga tem o seu HD?
- 60. Mas vou aumentar para 120.
- E esse ícone ali no cantinho...
- KaZaA, né? Nível "Supreme Being".
Um ser supremo! Foi uma paixão instantânea e avassaladora. O Vandemilson passou a imaginar como seria maravilhoso passar horas e horas, assim, plugado, com alguém como a Nat. Poderiam compartilhar softwares. Intercambiar arquivos. E um dia, quem sabe, só ele e ela, distantes do mundo, os dois on-line numa sala de chat. Não dava para perder uma oportunidade daquelas, e o Vandemilson sacou que, dali em diante, tudo seria uma mera questão de resolução:
- Qual é a resolução de sua tela?
- 1 024 por 768. Mas eu só curto AVI. E detesto compressão!
O Vandemilson também! E aí ele não conseguiu mais resistir:
- Escuta, Nat, não quero parecer precipitado, mas... posso pegar no seu mouse?
Um mouse a laser sem fio, suave, que reagia ao mais leve toque dos dedos. E as caixas de som da Nat? Perfeitas e bem torneadas. O Vandemilson tremia só de pensar no hardware dela, com uma nova surpresa em cada slot. Mas... será que ela toparia uma interface?
- Uma hora qualquer, se você quiser, eu poderia te mostrar meus links...
- Ah, eu ia adorar!
E aí o Vandemilson sentiu aquela modulação típica de uma paixão ao primeiro clique. Seus olhos brilharam com intensidade (32 bits) e ele deu um longo suspiro em wav.
E começou então a pensar (um processo fisiológico de inputs e outputs que não requer o uso de equipamentos periféricos). Ele estava ali na empresa havia quanto tempo? Quase dois anos? E não conhecia ninguém. Nem o nome do seu gerente ele sabia (embora soubesse o que realmente interessava, a senha de acesso dele). Mas o que eram as pessoas que gravitavam a seu redor? Apenas letras e arrobas em seu catálogo de endereços eletrônicos.
Quanto ao resto do mundo, tudo ia e vinha via internet ou estava armazenado em arquivos de imagens digitalizadas. Seu universo inteirinho cabia numa tela de 17 polegadas. E o Vandemilson concluiu que só havia uma palavra capaz de definir tudo aquilo: "debugged". Ou, traduzindo, "felicidade".
Nessa equação de vida, a única variável nova era a Nat. Por ela, quem sabe, até valeria a pena dar um reboot e arriscar um relacionamento mais chegado. E foi nesse exato instante que o sistema entrou de novo no ar. Mas, antes que a Nat desaparecesse na baia, o Vandemilson se encheu de coragem e fez a proposta:
- Então, fica assim?
- Fica. A gente se tecla.
E até hoje os dois continuam conectados numa boa, a uma média de quatro send por hora. Quando querem se ver ao vivo, é simples: os dois ligam as webcams de seus micros. O fato de continuarem a poucos centímetros de distância um do outro não conta. Afinal, este é o século 21. O século digital, onde abraços se tornaram abs, beijos se transformaram em bjs e bom humor virou <eheheh>.
Mas o mais importante de tudo é que, se um dia a paixão for para a lixeira, tudo irá ser resolvido sem traumas nem lances emocionais. E em apenas 1 segundo: shut down? Ok.
Max Gehringer, Revista Exame

1– No texto, a narrativa se desenvolve a partir da queda do sistema de computadores num escritório. Como as personagens se identificavam e se relacionavam até esse momento?
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2– Ao se levantar da cadeira, Vandemilson faz várias descobertas. O que ele descobre sobre o seu local de trabalho?
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3– O que Vandemilson sente ao encontrar pessoas trabalhando tão próximas?
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4– Observe a construção das falas do diálogo. São frases curtas ou longas? O que o tamanho das frases determina sobre a maneira das pessoas se relacionarem?
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5– De acordo com o texto, a comunicação facilitada pela internet torna as relações interpessoais (entre as pessoas), superficiais e rápidas? Justifique a sua resposta.
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 6 – Releia o último parágrafo: “Mas o mais importante de tudo é que, se um dia a paixão for para a lixeira, tudo irá ser resolvido sem traumas nem lances emocionais. E em apenas 1 segundo: shut down? Ok.” Como são tratados os sentimentos nesta visão do autor?
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