sexta-feira, 1 de março de 2019

APENAS UM TIROTEIO NA MADRUGADA



LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

Primeiro, nos acostumamos a ver pessoas indo para o trabalho penduradas nos ônibus.
Depois, achamos normal haver gente dormindo embaixo de pontes. E já não nos emocionamos quando vemos uma criança miserável esmolando nos semáforos.
Será que o mundo mudou ou nós é que estamos mudando.

Apenas um tiroteio na madrugada

São 2h30 da madrugada e eu deveria estar dormindo, mas acordei com uma rajada de metralhadora na escuridão. É mais um tiroteio na favela ao lado. 
Além dos tiros de metralhadora, outros tiros se seguem, mais finos, igualmente penetrantes, continuando a fuzilaria. Diria que armas de diversos calibres estão medindo seu poder de fogo a uns quinhentos metros de minha casa.
       No entanto, estou na cama, tecnicamente dormindo. Talvez esteja sonhando, talvez esteja ouvindo ainda o tiroteio de algum filme policial. Tento em princípio descartar a ideia de que há uma cena de guerrilha ao lado. Aliás, é fim de ano, e quem sabe não estão soltando foguetes por aí em alguma festa de rico?
Não. É tiroteio mesmo. Não posso nem pensar que são bombas de São João, como fiz de outras vezes, procurando ajeitar o corpo insone no travesseiro. 
       Estou tentando ignorar, mas não há como: é mais um tiroteio na favela ao lado.
       Se fosse durante o dia, talvez saísse ao terraço para olhar o que sucede. Muitas vezes vi carros de policiais estacionados na boca da favela, homens subindo o morro com escopetas e metralhadoras, com os corpos colados aos barracões, como em cena de filme, numa aldeia do Vietnã. Dos prédios ao lado, os moradores com a cabeça para fora das janelas, espiando, acompanhavam a fuga dos marginais se enfiando em moitas e despencando encosta abaixo.
       Meu corpo quer dormir. Afinal, é apenas mais um tiroteio na favela ao lado, amanhã tenho que trabalhar e esse filme eu já vi. Penso isto antevendo que na manhã seguinte as filhas comentarão o tiroteio como se comenta um capítulo da novela, e isto me intriga. O que fazem com os corpos das vítimas? Há um canibalismo diário? Há um cemitério clandestino lá em cima? Também nunca vi ambulância recolher feridos. São tão ruins de mira assim?
       Alguns minutos se passam. Não sei se foram dez ou vinte. Nessa atmosfera de sono não se tem muita noção de tempo. Súbito, novas rajadas de metralhadora perpassam pela madrugada. Se eu estivesse no Líbano, isto talvez fosse normal. É o que pensamos daqui. Não sei se no Líbano já se acostumaram a isso.
       Não sei também o que pensarão os turistas deste bairro. Pois se eu estivesse no Líbano e assistisse a um tiroteio assim, na volta ao meu país ia contar nas festas e jantares o formidável tiroteio que assisti. Exatamente como farão os australianos, americanos, alemães e espanhóis turistas que, como eu, estão em sua cama ouvindo essas rajadas de metralhadora.
       O tiroteio continua e estamos fingindo que nada acontece.     
      Sinto-me mal com isto. Me envergonho com o fato de que nos acostumamos covardemente a tudo. Me escandalizo que esse tiroteio não mais me escandalize. Me escandaliza que minha mulher durma e nem ouça que há uma guerra ao lado, exatamente como ela já se escandalizou quando em outras noites ouvia a mesma fuzilaria e eu dormia escandalosamente e ela ficava desamparada com seus ouvidos em meio à guerra.
        Sei que vai amanhecer daqui a pouco.
        E vai se repetir uma cena ilustrativa de nossa espantosa capacidade de negar a realidade, ou de diminuir seu efeito sobre nós por não termos como administrá-la. Vou passar pela portaria do meu edifício e indagar ao porteiro e aos homens da garagem se também ouviram o tiroteio. Um ou outro dirá que sim. Mas falará disso como de algo que acontecesse inexplicavelmente no meio da noite.
        No elevador, um outro morador talvez comente a fuzilaria com o mesmo ar de rotina com que se comenta um Fla-Flu. E vamos todos trabalhar. As crianças para as escolas. As donas-de-casa aos mercados. Os executivos nos seus carros.
        Enquanto isso, as metralhadoras e as armas de todos os calibres se lubrificam. Há um ou outro disparo durante o dia. Mas é à noite que se manifestam mais escancaradamente.
        Ouvirei de novo a fuzilaria. Rotineiramente. É de madrugada e na favela ao lado recomeça o tiroteio. Não é nada. Ouvirei os ecos dos tiros sem saber se é sonho ou realidade e acabarei por dormir. Não é nada. É apenas mais um tiroteio de madrugada numa favela ao lado.
  Affonso Romano de Sant’Anna.


1- O narrador é acordado durante a madrugada com o barulho de uma rajada de metralhadora.
a)  Em que lugar está o narrador?
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b)  Onde ocorre o tiroteio?
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c) O que o narrador quer dizer com a expressão “estou tecnicamente dormindo” (3º parágrafo). Justifique a sua resposta.
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2- O narrador tenta ignorar o tiroteio, imaginando que os tiros pudessem ser fogos de artifícios, mas não consegue.
a) Por que inicialmente ele prefere imaginar que não se tratava de um tiroteio?
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b) O que o deixa mais indignado quanto ao comportamento das pessoas e quanto ao seu próprio comportamento em relação ao que ocorre?
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3- A divisão entre a favela e o edifício não é apenas física. Entre esses dois mundos, há outros tipos de divisão.
a) A que classe social pertence o narrador? E os habitantes da favela?
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b) Se o narrador se sente indignado, como devem se sentir os moradores da favela? Por que se sentem assim?
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4- O narrador afirma no 11º parágrafo: “Sinto-me mal com isto. Me envergonho com o fato de que   nos acostumamos covardemente a tudo. Me escandalizo que esse tiroteio não mais me escandalize”.  Por que um tiroteio no meio da madrugada deveria escandalizar as pessoas?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

5– O título do texto “Apenas um tiroteio na madrugada”, com pequenas variações, é empregado no 1º, no 5º, no 7º e no último parágrafo.  Por que essa frase é tão destacada no texto?
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6– Observe que o texto termina como começa. A partir deste movimento de círculos, o que o autor pretende apresentar em relação ao tema abordado no texto?
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