sexta-feira, 1 de março de 2019

Luxo, lixo; guri, gari. E daí?
Meu nome? Onde moro? Se tenho mãe ou pai? Ora, o importante é que eu existo. Ou vocês querem que, para existir, a gente tenha que recitar nome, endereço, nome de pai e mãe? Isso é coisa de documento, não de pessoa. Olhem para mim: existo, sou mulato, estou crescendo e os adultos costumam dizer que sou o futuro do Brasil.
Existo, e pronto! Ocupo lugar no espaço e quem disse isso foi um cientista, um sábio que viveu há muitos anos; acho até que antes de Jesus. E incomodo. Ando descalço, roupas velhas. Eu gosto de andar lá no centro, na Avenida Goiás, na Rua 7, na Rua 4. Gosto de ver aquelas madamas bacanas se encolhendo pra não esbarrar em mim, medo de sujar a roupa fina. Gosto de correr pelos canteiros da Goiás, eu e meus colegas — os engraxates, os apanhadores de papel, os pivetes. É bom, sabe? É bom a gente ter uns amigos assim. Eu tenho muitos e gosto deles. Eles também gostam de mim. Do nosso jeito: a gente gosta de se enrolar. Se o juizado pega um, os outros se mandam. É que se a gente quiser bancar o valente, vai também. Nossa amizade é assim, ninguém exige nada de ninguém; cada um se vira como pode. Acaba sendo melhor, porque a gente é mais livre. Não tem desses negócios de fazer visitinhas, marcar compromissos. Hoje eu fico com os engraxates, amanhã com os entregadores de feira, depois com os catadores de papel. Outras vezes a gente faz uma cara de triste e vai batalhar freguês de lanchonete. No Café Central, onde o povo come em pé e com pressa, é batata: é só fazer uma cara de fome e faturar os caras. Outro dia um freguês lá mandou eu escolher e eu pedi um sanduíche daqueles bacanas, com carne, ovo e alface. Vai ser bom, senhor! Tem uns caras legais, ainda. Uns caras que cooperam, né?
Mas o bom mesmo é lavar carro. Eu ainda sou meio pequeno, os caras não confiam muito. Aí eu encostei num negão que faz ponto na viela do Popular. Fiquei na de ajudante dele. Faturamos bem. Os caras deixam o carro aberto pra gente lavar por dentro, aí a gente liga o rádio, senta no carrão e fica pensando até que é o Fittipaldi.
Futuro do Brasil, eu! Ouvi no rádio, a professora lá do grupo também falou assim uma vez. Sabe que eu tenho saudade do grupo? Fiz só até o segundo ano, mas tive de sair porque a diretora falou que num tinha carteira pra todo mundo. Também, precisava trabalhar, eu já tava crescendo, tinha oito anos. Precisava ajudar, né? Aí eu comecei a pegar carona no ônibus das seis e meia. Porque no das sete horas o cobrador era mau. Um dia eu fui passar debaixo da roleta e ele meteu o pé na minha cara. Machuquei o nariz, mas menti pros amigos que foi briga. Foi até bom, porque eu inventei uma história de valentia e fiquei respeitado.
Quando dava fome, no começo era duro. Até que aprendi uns macetes. Fiz amizade com a cozinheira do restaurante do Armando, ela passava comida pra mim pela janela, escondido. Aí um menino que tinha brigado comigo contou pros caras lá e eu perdi a boca. A gente fica na rua até tarde, mas de noite tem que esconder do juizado. Tem dia que a gente tá tão cansado de bater perna que nem vai pra casa. Fica por aí, dorme nas vielas, debaixo das marquises. Tem uma garagem ali na Paranaíba que o guarda da noite me topa. De vez em quando eu durmo lá. Ele deixa eu dormir dentro de algum carro. Eu fico com dó de sujar os carros e durmo no chão. Me cabe bem, porque eu já tenho onze anos mas sou meio pequeno. E é tão quentinho.
Eu devia ter ficado lá no Centro hoje. Tá um frio danado, não sei o que vim fazer no Bairro Feliz.
Feliz é o bairro, com essa gente toda em casa, quentinho. Televisão colorida. Pô, aquele fedaputa daquele menino podia ter ficado calado na hora que me viu na janela. Tive que correr, com medo do pai dele. Bem na hora que tava passando Duas Vidas. Quando eu crescer quero ser doutor. Que nem o Doutor Vítor. Ficar rico. Ter carro, casa bacana. Mas pra ser doutor eu preciso estudar e pra estudar tenho que mudar de vida. Precisava deixar de ser pobre.
Oba, uma caixona de papelão! Vou deitar aí dentro. Vai ficar quentinho. É só o pessoal da limpeza não me catar pensando que sou lixo.
                                                                                                                                          Luiz de Aquino Alves Neto

1-    Ao contar a sua história, o menino não apresenta seu próprio nome. O que mais ele deixa de apresentar?
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2-    Por que o menino não se apresenta de um jeito mais formal, com nome de pai, mãe e endereço como as pessoas geralmente fazem?
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3-    Ao se apresentar no início do texto, como ele se identifica?
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4-    É possível afirmar que a personagem conseguiu criar laços de amizade? Explique.
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5-    Cite pelo menos três ações que o menino realiza para conseguir sobreviver.
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6-    Pelo conjunto de informações do texto é possível saber qual é o ambiente em que o menino vive. Que ambiente é este?
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7-    Segundo o texto, qual é o maior sonho do menino?
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8-    Pelas condições que ele vive, há chances dele realizar esse sonho? Justifique a sua resposta.
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9-      Imagine que alguns anos se passam, e o menino sem nome cresce.
Agora seja criativo e desenvolva um texto dando um destino para ele.
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